Por Ana Cláudia Bastos de Pinho e Fernando da Silva Albuquerque
A aula era sobre princípio da insignificância. O professor, para explicá-lo, sem deixar dúvidas – até porque suscitar perguntas parece um incômodo – utilizava o exemplo de um furto de um copo d’água. Como se o maior problema de política criminal do país fosse dar destino aos ladrões de copos d’água (aliás, em tempos de racionamento, talvez a tese da insignificância sequer fosse acatada).
Ali também, na academia, discutia-se, durante horas, um modelo de solução judicial de conflitos baseado na igualdade, como se as pessoas que chegassem ao Judiciário, experimentassem relações sociais nas mesmas condições de acesso e oportunidades.
Da mesma forma, os manuais de direito encontram-se recheados de exemplos de “outro mundo” (se é que podem ser assim chamados, já que “mundo” é palavra que pressupõe realidade compartilhada: mundo é, afinal, o que “munda”). Lenio Streck já denunciou várias dessas aberrações do ensino e das práticas jurídicas: gêmeos xifópagos, homem-lagarto, assassinos que confundem anões com crianças, sujeito que se veste de cervo e vai para a floresta e tantos outros exemplos absurdos (o direito penal é repleto deles).
Esse afastamento da realidade não se dá impunemente, por óbvio. Pagamos uma alta conta por esse alheamento. A criminologia crítica nos alerta do quanto somos capazes de ignorar dados da realidade e fabricar outros, que nos convem. O discurso do punitivismo, por exemplo, esbraveja pela redução da maioridade penal, sem dispor de informação precisa acerca da efetiva participação de adolescentes em crimes violentos (será que o número efetivamente justificaria a medida?).
Acompanhando as advertências de Streck e as lições de Dworkin, é preciso deixar claro que temos graves problemas com os “princípios”. Outra séria tendência de mandar a realidade para bem longe… Princípios não são construções, não são modelos expostos numa vitrine para que o comprador escolha o que melhor lhe convier. Princípios são a introdução do Direito na vida prática. É a realidade interpenetrando o Direito, exatamente como delineado em “O Império do Direito”. Dworkin em nenhum momento, conceitua, classifica, nomeia um princípio. Mas nos faz chegar à perfeita compreensão do que ele vem a ser por meio de argumentações exaustivamente exemplificativas.
Não preciso de um conceito do que seja moralidade política, tampouco integridade, mas as entendo perfeitamente quando leio o caso Brown x Board of education, ou quando Dworkin conta a história do beneficiário do testamento que mata o avô para ficar com a herança (caso Elmer).
Do lado debaixo do Equador, infelizmente, as coisas não se dão bem assim. Aqui, adoramos inventar, criar. Na terra das bananas, damos banana à tradição construída, compartida. Ignoramos a teoria. Dizemos que é aquilo que não é, e vice versa. Adoramos a frase “mas isso é seu entendimento. Eu penso diferente”. Ou “Direito é assim mesmo: cada um pensa o que quer. Não é uma ciência exata”. E é exatamente aqui que a realidade se perde, dissipa-se, vai para bem longe…
Parece que o que aprendemos e o que ensinamos sobre o direito, no Brasil, encontra-se mergulhado em um universo ficcional que, talvez, dê conta de explicar os problemas jurídicos dos desafortunados Caio, Tício e Mévio – ficções, diga-se de passagem – mas que fracassam diante de uma realidade que, nitidamente, escapa desse imaginário dogmático.
É como se tivéssemos atravessado a fronteira entre a ficção e a realidade, à exemplo do que ocorre com os protagonistas de “As Crônicas de Nárnia”. Na história de C. S. Lewis, quatro crianças – Edmundo, Susana, Pedro e a pequena Lúcia – acabam descobrindo uma terra encantada, povoada por faunos, animais falantes, anões, feiticeira e etc.
Esse reino é Nárnia. O acesso a ele se dá através de um guarda-roupa (aqui, chamaremos de “armário”), que funciona como uma espécie de portal mágico. Lúcia é quem descobre a existência desse portal, escondido em um dos muitos quartos da casa em que foi morar com seus irmãos, refugiados de uma guerra em Londres.
Mais tarde, todos eles acabam entrando no armário e empreendendo uma série de aventuras na terra encantada de Nárnia. A dogmática jurídica “guarda” muito dessa realidade simbólica. À semelhança do “armário”, que conduz a um reino encantado, ela também nos joga num território de conceitos e de símbolos. O problema é que o abismo entre ficção e realidade tem se tornado cada vez maior. Como se o direito que aprendemos servisse tanto mais à Nárnia, do que propriamente, ao nosso mundo.
Que o Direito é uma experiência de sentido, já o sabemos, desde há muito, afinal ele é (na) linguagem. Mas há um problema quando insulamos sentidos em conceitos descolados das coisas, desvivificados, diluídos em uma superficialidade que nunca encontra os fundamentos, que nunca vai até as raízes, que não desce, pois, até o princípio. Como os faunos que só existem em Nárnia, somos obrigados a nos ver, às voltas, com conceitos e teorias que não “acontecem” aqui, do lado de fora.
Os manuais simplificados, embalados à vácuo (falta oxigênio aos seus conceitos) abusam da superficialidade, dos efeitos, das palavras mágicas que tornam tudo mais agradável: para ensinar excludentes de ilicitude, o manual descomplica e manda lembrar do Bruce “LEEE” [(L) egítima defesa, (E) stado de necessidade, (E) xercício regular de direito, (E) strito cumprimento de dever legal]. Pronto. Nada mais é necessário dizer sobre o tema. Bruce Lee personifica, nesse Direito Mítico, o nada que aprendemos nos manuais.
Talvez isso explique o aluno que chega com o professor, às vésperas de entregar seu projeto de TCC, e diz: “professor, você pode ME DAR um tema?”. Como se “temas”, problemas de pesquisa, hipóteses, pudessem ser DADOS! Mas, se o sujeito passou a graduação inteira se relacionando com manuais que “dão” as coisas, o que esperar?
Quando Lúcia volta de Nárnia, pela primeira vez, descobre que todo o tempo em que estivera naquele lugar não durou um segundo sequer no mundo real. Talvez por isso, o tempo da (de) mora nesse universo de conceitos atemporais, deslocados, superficiais e simplificados não nos permita avançar no tempo, aqui fora, no mundo real.
Enquanto discutimos sobre furtos de copos d’água, “naturezas jurídicas”, crimes de gêmeos xifópagos, ou ainda sobre pessoas que escorregam e caem em tonéis de vinho, a realidade (de) manda uma ordem de compreensão para muito além das simplificações.
É Warat quem lembra que as fronteiras entre o imaginário e a realidade unicamente podem ser estabelecidas por uma decisão política. Em outras palavras, somos nós quem decidimos sair do armário, no Direito. Arriscado?! Não há dúvida. Basta lembrar do que aconteceu com o fauno Thumnus, preso pela Feiticeira Branca, em Nárnia. O motivo? Ele dizia que acreditava em uma Nárnia livre…
Ana Cláudia Bastos de Pinho é Doutora em Direito (UFPA). Professora de Direito Penal (UFPA – graduação e Pós Graduação). Pesquisadora do CESIP (Centro de Estudos sobre Intervenção Penal). Promotora de Justiça.
Fernando da Silva Albuquerque é Mestrando em Direito (UFPA – linha de pesquisa “Intervenção Penal, Segurança Pública e Direitos Humanos”). Pesquisador do CESIP (Centro de Estudos sobre Intervenção Penal).