Por Sonia Canto
Hoje, a contagem implacável marca 427 dias. 427 auroras sem a
sua presença, Fernando, e cada uma delas é um lembrete vívido da sua ausência
que se alastra como uma sombra, por vezes densa como os nimbos de Macapá. A
saudade, essa faca que golpeia o rastro de cada lembrança, me encontra em
silêncio, tentando decifrar o indizível que você, com sua pena tão particular,
transformava em beleza.
É nesse labirinto de emoções que releio seus textos, buscando não apenas as palavras que me moldaram, mas a própria essência de quem você foi. Em "A Mulher e a Dádiva da Chuva", sinto a força de um amor que abarca paisagens e sentimentos. Sua mulher-chuva, um dom, um cenário de transformação, um perfume que se entranha – assim como você se entranhou em minha vida, uma presença que era "absolutamente chama, sem o consumir do fogo". Hoje, a chama arde de outra forma, um calor nostálgico que busca acender a centelha da criação que se esvai sob o peso dos compromissos, tentando manter o equilíbrio entre a razão que exige ação e a emoção que clama por luto. Minhas energias se esgotam nessa paisagem interna, onde as pétalas caídas nos jardins são as memórias que insistem em florescer, mesmo na ausência.
Lembro-me de "Tu a Minha Espera", e sinto a ironia da busca por um porto que, agora, se revela um lugar de memória e não de reencontro físico. A açucena que você via no palco dos sonhos, dourada de luz e efeitos especiais, é agora a flor que brota na paisagem da saudade, uma beleza que dói e que me faz sentir a eternidade da espera. Meu coração, como o seu, bate duplamente – por ter tido a dádiva da sua presença, e pela desordem que a paixão pela sua memória provoca. Eu me fiz de peixe para o seu anzol, e agora nado em águas que carregam o eco dos seus versos, buscando um novo rumo, uma nova forma de te ter perto, mesmo que seja apenas na ressonância dos seus escritos.
E então, "A Morte e o Espanto". Ah, Fernando, você que desvendava os mitos, que explorava a tensão entre a vida e a morte, como eu lido agora com a sua própria partida? A serpente que troca de pele para a juventude é um contraste cruel com a finalidade da sua ausência. Você nos ensinou sobre a alma que se eleva aos campos de luz, sobre a poesia que reside no "ato findo", na sombra que "volta para o corpo em forma de alma". Mas a dor de compartilhar "nossas dores com a perda de amigos, de ídolos e de nossas referências pessoais" é um abismo que ecoa suas próprias palavras, e é nesse abismo que me sinto, entre o espanto da finitude e a busca por algum tipo de imortalidade em sua obra.
Sua influência não foi um mero sussurro, mas o estuário de loucura que você amava, a generosidade das águas que moravam em você, o esplendor das estações que existiam em seu ser. A sua voz, seu olhar sociólogo que desnudava as complexidades da existência, e seu coração de poeta que celebrava a vida em toda a sua crueza e beleza, são o alicerce que busco para reerguer a minha escrita.
A cada linha sua, sinto que a "sombra perdida na floresta que volta para o corpo em forma de alma" é a sua, que me visita e me inspira a seguir, mesmo que o esforço para equilibrar razão e emoção me esgote. A saudade é um oceano, e suas palavras são as ilhas onde busco refúgio, na esperança de um dia transformar a dor da perda na "poesia daquilo que parte, que renasce como um caminho para uma nova aventura da vida". É a sua dádiva, Fernando, que ainda chove em mim, lavando a alma e alimentando a esperança de que a escrita, mais uma vez, possa brilhar, como o sol que você esperava "para todas as mulheres que trabalham, sofrem e amam nesta terra salpicada de luz do equador". Seu legado vive, e nele encontro a força para continuar.