terça-feira, 28 de outubro de 2025

Doze Olhos - Releitura por Sônia Canto

 


Doze Olhos

Poema de Fernando Canto

Mano, estarás presente aqui no chão

E 12 olhos sustentarão

O teu olhar ardente

Do nascer do sol até o escárnio

Das orações que farão de ti

Um lobo de espécie em decadência.

Então cada sorriso teu só brilhará

Com a cura que virá

Para tua alma envenenada

Que teu coração primordial não esquece.

Mas veja bem:

Os 12 olhos te perseguirão

Nos caminhos iluminados por tochas de estrelas

Na caminhada inevitável em direção

Da luz maior que derreterá tua alma fria.

 E quando olhares para trás

Os 12 olhos vão lacrimejar na despedida

Ofuscados pelas luzes radiantes

Da partida.

(FC 07/07/2014)


Hoje, 28/10/2025, véspera em que roda da vida fissurou meus alicerces. Fernando na UTI em estado grave e eu, cheia de esperança de que logo, logo ele estaria em casa. Não foi o que aconteceu de fato. Fernando fisicamente partiu em 29/10.

Um ano depois, me percebo num misto de estupefação e clareza ao revisitar os textos, foto, e blogs buscando organizar seu excepcional legado para projetos futuros.

Encontrei o poema Doze Olhos, escrito em 07/07/2014. À primeira leitura, imaginei que este poema já havia sido publicado em algum dos 20 livros. Não. É inédito. Foi publicado no blog do Elton Tavares em 26/01/2024, encaminhado pelo próprio Fernando (https://www.blogderocha.com.br/poema-de-agora-doze-olhos-fernando-canto/). Estarreci de vez. A minha percepção sobre "Doze Olhos" de Fernando Canto, escrito em 2014, reverberou com tal intensidade na véspera de sua partida física. Senti como se fosse um testemunho pungente da atemporalidade de sua poesia. Senti como se ele tivesse derramado aquelas palavras já com um pressentimento íntimo, uma melodia premonitória de sua própria despedida.

 É, de fato, impressionante a maneira como alguns artistas parecem transcender as barreiras do tempo, legando-nos obras que ganham novas camadas de significado à medida que a vida se desdobra.

Essa sensação de que o poema foi escrito "às portas de sua despedida", apesar de uma década de distância, não é mera coincidência; é a assinatura da verdadeira arte. Fernando Canto, através de "Doze Olhos", nos convida a uma reflexão multifacetada sobre a existência, o olhar do outro e, em última instância, a jornada da alma.

Permito-me seguir explorando o texto escrito por Fernando, recordando o que ele sempre me dizia: “um texto, ao ser publicado alça voo. O escrevente não tem mais poder sobre ele, cabe ao leitor decidir seu destino: acolhe ou simplesmente o ignora”.

Doze Olhos: A Vigilância do Amor e o Espelho do Ser

 No coração do poema, pulsam os "Doze olhos", uma imagem poderosa que se transfigura ao longo dos versos. Inicialmente, eles parecem representar uma presença externa e interna, ora sustentando, ora julgando. São os olhos daqueles que nos amam, que nos veem, que nos formam; mas também os olhos da nossa própria consciência, da autoavaliação, que nos fazem questionar quem somos e o que nos tornamos.

"Mano, estarás presente aqui no chão

E 12 olhos sustentarão

O teu olhar ardente"

 

Nestes versos, vislumbro o apoio, a certeza de que, apesar das "orações que farão de ti / Um lobo de espécie em decadência", há uma força que sustenta, que reconhece o "olhar ardente" – a essência vibrante que define o ser. É o paradoxo da vida: ser moldado e, por vezes, desafiado pelo olhar alheio, sem nunca perder a chama interior.

 A Jornada da Alma: Cura e Transformação

A poesia de Fernando não se esquiva das sombras, e é na vulnerabilidade que a esperança floresce. A menção à "alma envenenada" e a promessa de "cura que virá" ressoam profundamente com a experiência humana de dor e superação. Cada sorriso, cada brilho, torna-se um testemunho dessa resiliência, ancorado na pureza de um "coração primordial" que se recusa a esquecer sua essência.

 Contudo, é na virada que a premonição se acende mais intensamente.

 

"Os 12 olhos te perseguirão

 Nos caminhos iluminados por tochas de estrelas

Na caminhada inevitável em direção

Da luz maior que derreterá tua alma fria."

 Aqui, a perseguição se transmuta em guia. Esses olhos não são mais meros observadores, mas condutores em uma **jornada espiritual e inevitável**. As "tochas de estrelas" desenham um caminho cósmico, transcendente, em direção a uma "luz maior". É o destino final, a fusão com o divino, que não apaga, mas "derrete" a "alma fria", transformando-a, purificando-a para a plenitude.

 

A Luminosidade da Partida

 É na estrofe final, o ápice dessa jornada poética que o poema se conecta de forma mais íntima e premonitória com a sua dor e, ao mesmo tempo, com a sua esperança e a atemporalidade que sinto nos escritos de Fernando.

"E quando olhares para trás

Os 12 olhos vão lacrimejar na despedida

Ofuscados pelas luzes radiantes

Da partida."

Fernando, há dez anos, parecia vislumbrar o próprio adeus. Os "12 olhos" que "vão lacrimejar na despedida" podem ser os meus (Sônia), os de Oriana, os de Julia, os de Lênio, os de André, os de Bruno, os de todos que o amam. São lágrimas de saudade, de perda, de "noventa dias de ausência física, mas a presença de Fernando em mim se fortalece dia após dia". A genialidade reside em que essas lágrimas são "ofuscadas pelas luzes radiantes da partida". A "partida" não é escuridão, mas um esplendor.

Essa "luz radiante" é o legado que ele deixou, os livros inéditos, as canções, os projetos tento organizar e trazer à tona. É o Festival de Música Universitária Fernando Canto, o Teatro Municipal Fernando Canto, o lançamento do livro "Um pouco além do arquipélago onde acho que Deus mora". É a percepção de que seu legado não se encerrou; ele floresce e se reinventa nas novas gerações. A dor da ausência, embora real e profunda, é temperada, é superada pelo brilho incontestável de sua obra e de sua memória.

"Doze Olhos" é, neste contexto, um testamento do amor eterno de Fernando, da sua própria resiliência e da crença de que a arte, o amor e a vida se encontram em uma "safra permanente". Este poema é um convite de Fernando para mim e para o mundo: sim, choremos a partida, sintamos a saudade, mas acima de tudo, celebremos a luz que ele irradia e que agora eu, como Guardiã, perpetuo. Ele previu a dor, mas também a luminosidade que viria a transcender tudo.

Fernando Canto, há dez anos, já parecia intuir que sua partida seria não um mergulho na escuridão, mas um encontro com uma luz tão intensa que ofuscaria a tristeza dos que aqui ficariam. Ele nos oferece uma visão poética da morte não como um silêncio, mas como uma sinfonia de estrelas.

Ao revisitar os escritos de Fernando Canto hoje, percebo que a verdadeira arte é aquela que, independentemente do tempo, continua a dialogar com a alma humana, oferecendo novas camadas de compreensão e emoção a cada leitura. "Doze Olhos" é um legado que nos convida a ver a vida – e a partida – com um olhar mais profundo, mais esperançoso, e eternamente luminoso.

Que a vida literária de Fernando possa continuar brilhando nesta “constelação de palavras estreladas” (escritos não publicados) que ele generosamente me encarregou de fazê-las “ganhar asas e desfilar no firmamento”. (Sônia Canto)

 

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