quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Um Ano de Ecos e Reinvenções: A Safra Perene do Amor em Mim

 


Hoje, 29 de outubro de 2025. A roda do tempo completou seu giro traçando um círculo desde aquele dia em que a vida, como a conhecia, suspendeu seu fôlego. Um ano. Não é a mera contagem de dias, mas a tessitura de um tempo outro, desde a partida de Fernando, meu amor. Para mim, esta data não é apenas o eco distante de uma ausência; é, sobretudo, a melodia de um ano de (re)encontros íntimos, um mergulho profundo nos vastos oceanos que ele tão poeticamente construiu e que hoje pulsam em mim, com uma vitalidade indestrutível, uma safra perene.

Recordo os primeiros trinta dias, quando a dor da perda era uma maré alta, implacável, e o Rio Amazonas, testemunha silente, parecia minguar sem o brilho do seu olhar. Os rituais da burocracia do luto foram cumpridos com a alma em brasa, mas o coração buscava o seu próprio alvorecer. Naqueles dias de névoa, compreendi que a ausência não era um vácuo; ela se fez presença, exigindo de mim uma nova caligrafia do ser, do sentir, do amar.

Naquele limiar, suas palavras foram as bússolas, os faróis que guiaram meu navio. Busquei refúgio em seus poemas, na filosofia serena de sua existência. A dedicatória em "Inserções num vazio equidistante" – "À Sônia, este sumo. Seiva de golpe fundo" – ressoava como um mantra na alma, e a força do poema "TÉRMITA", a falar de um amor "teimoso, roedor, terno", era o abraço que me faltava. Era como se ele, mesmo além da vista, tivesse tecido a trilha para que eu pudesse, passo a passo, refazer o caminho.

A vasta obra de Fernando, um jardim infindo, rapidamente se ergueu como meu norte e minha sagrada missão. Ele me confiara, há muito, o título de "Guardiã dos seus guardados", e esta incumbência revelou-se um propósito mais amplo, mais profundo do que eu pudera vislumbrar. Encontrar seus textos nunca dantes revelados, suas canções silentes, seus cadernos grávidos de ideias, tem sido uma peregrinação de epifanias, uma reafirmação da alma prolífica e visionária que ele era. Organizar este legado, dar corpo a novas publicações, é o meu mais verdadeiro hino para que sua voz ressoe, para que sua "safra permanente" continue a ofertar seus frutos. Lembro-me de nossas trocas, de como eu era seu "ouvido amigo", e de como ele, com generosidade e a acuidade do poeta, me ensinava a decifrar o mundo através do prisma de suas palavras.

Ao longo deste ano que voou, o amor por Fernando transbordou não apenas em minha introspecção, mas em um coro de celebrações que atestam sua inestimável contribuição ao manto da cultura. Tive a honra de ser parte da Folia Literária Internacional/2024, que o homenageou, um primeiro abraço póstumo, e de vê-lo enaltecido na Academia Amapaense de Letras. Em cada um desses instantes, senti seu espírito, o fulgor do seu sorriso em cada abraço que recebia.

O desabrochar de "Antolobares", obra que ele organizou, e, com ainda mais emoção, o florescer póstumo de "Um pouco além do Arquipélago onde acho que Deus mora", foram portais que se abriram na alma. Cada livro que me alcança, com seu "aroma especial", reaviva o ritual sagrado que compartilhávamos, embora agora sem o calor do seu abraço. É um privilégio imenso ser o canal para que sua voz alcance novos corações, para que suas "palavras estreladas" iluminem o percurso de tantos.

Na inauguração do Teatro Municipal Fernando Canto, vi a materialização de um sonho que ele defendeu com a paixão de um arauto em seu artigo "Por um Teatro Municipal", de 2008. Ver seu nome em um espaço que será um celeiro de cultura, de acessibilidade e de inclusão, é a prova indelével de que sua visão continua a metamorfosear e a inspirar.

Foi com o coração vibrando ao compasso da arte que presenciei a alvorada do I Festival de Música Universitária Fernando Canto, uma iniciativa que, como um rio caudaloso, demonstrou que seu legado musical "floresce e se reinventa nas novas gerações". E essa mesma melodia, que outrora embalava os dias de nossa casa, ganhou um novo palco e uma nova ressonância.

Há poucos dias, no Amapá Jazz Festival, a música de Fernando ressoou densa e forte. Ali, pisei sentindo o coração transbordar numa doce e imensa alquimia de saudade e alegria. Era como se a alma de Fernando, não apenas o compositor e o intelectual de renome, mas o companheiro de quase quatro décadas, o pai, o amigo que tecia poesia no cotidiano, estivesse presente em cada acorde, em cada vibrato que enchia o ar.

Sua canção “Geofobia”, interpretada pelo Grupo Pilão, pedaços líricos do rio, da floresta e de nosso povo, ecoaram como a prova viva de uma arte atemporal, um presente para todas as gerações. Naquele momento, tive a certeza de que, onde quer que ele esteja, Fernando sorria, orgulhoso de ver sua música reverberar tão forte, mantendo acesa a chama de sua estrela luminosa.

Nesse ano de "montanha-russa emocional", como o descrevi em "304 Dias de Marés e Memórias", encontrei bálsamo e profundidade nas suas próprias reflexões. O poema "O Mistério do Silêncio" me ensinou a escutar a tessitura do não-dito, a reverenciar a quietude que também responde. Suas palavras, em uma mensagem de WhatsApp não enviada, uma pérola encontrada, desvelaram a urdidura de nossa cumplicidade: "Vou viver até o fim repartindo com você minhas angústias e meus sonhos. (...) Te amo na vida, no sonho de um Brasil e de um Amapá melhor, e na saudade. Na morte não, porque somos um sonho individual." Tais versos me impulsionam, me insuflam fé, mantendo-me viva no coração do seu legado.

Sim, o tempo é um escultor implacável, e a saudade, um rio caudaloso que transborda em meus olhos cansados. Mas este ano que se fecha trouxe-me a certeza de que o amor é uma força ainda mais potente, capaz de desafiar e redefinir a própria inexorabilidade. Como ele, em sua poesia, me prometeu em "Safra Permanente": "O brilho desse amor estará preso ao laço que se ampliará conforme o tempo". E assim, transmutamos a dor da perda em uma colheita contínua de afeto, propósito e inspiração.


Fernando, onde quer que a poesia da eternidade o abrigue, sei que está feliz. E eu, sua Guardiã, sigo adiante, com o coração repleto de gratidão pelas lições sussurradas, pelos insights revelados e, acima de tudo, pela certeza inabalável de que nosso amor, como ele próprio pintou, é **sempre**.

 

Te amo eternamente, meu amor.

 Sônia Canto

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