Já são noventa dias de ausência física, mas presença de
Fernando em mim se fortalece dia após dia.
É um misto de ternura e completude que torna meus dias
mais amenos, menos solitários.
Fernando ao me mostrar um texto recém-criado (não lembro
qual), eu fiquei extasiada e disse a ele que queria entrar no seu cérebro pra
ver como aquelas palavras se completavam. Ele me disse que eu já estava nele
assim como ele em mim.
Hoje, este diálogo faz todo sentido na minha cabeça e no
meu coração.
Reservo horas dos meus dias a organizar tudo o que está
nos nossos computadores e encontro textos antigos com conteúdos muito atuais.
Letras de canções destinadas a vários cantores. Livros inéditos com poemas,
crônicas, prosas poéticas, etc. etc. etc.
Hoje resolvi ouvir algumas canções que ele fez pra mim.
A que bateu forte no meu coração foi Lume, gravada pelo querido Zé Miguel.
Estes versos, “Vem amor / faz de mim um veio mineral áureo cantante / Capaz de
partilhar com o mundo / Nada além do que a vontade de fazer mudar a vida /
Enquanto já estás e és refém do meu cantar / Até esse milênio atravessar a
gente e a gente atravessar a vida”
Não consegui fazer de Fernando um veio mineral áureo
cantante, mas posso partilhar com o mundo sua obra seus projetos, sua vida
vivida tão intensamente.
Música incluída no CD ‘Na maré dos tempos’, gravado em
1995, em comemoração aos 20 anos de carreira musical do Grupo Pilão.
É hora das horas
É tempo de vento
É hora de encontro
É tempo de ir
Já não tem brinquedo
Já não tem palavra
E o sol brilha pouco
Longe do equador
Ai, dor
De saber agora
Que me levo embora
Me faço de brisa
Mas tenho que ir
Há
melodias que nascem da saudade, e há saudades que se convertem em canções. No
cerne de uma partitura tão delicada quanto "Pequena canção de terra",
pulsa a própria vida, não apenas de um poeta, mas de uma família inteira. Uma
canção que, ao ser revisitada, rompe diques e faz as lágrimas descerem,
torrencialmente, revelando a crueza e a beleza de uma escolha talhada no amor.
Macapá,
chão fértil de raízes, berço do homem amazônico, Fernando. Em suas veias, o
Amapá corria como um rio caudaloso, alimentando a poesia que brotava em
"Os Periquitos Comem Mangas na Avenida" e o encanto do "Roteiro
Poético". Ali, onde a família se aninhou no Laguinho, ele teceu os
primeiros fios de sua arte, um artista já prolífico antes mesmo de o vento da
mudança soprar.
Mas
o destino, por vezes, desenha curvas inesperadas, e a saúde de uma filha, a
pequena Oriana, tornou-se a bússola implacável. "É hora das horas, é tempo
de vento, é hora de encontro, é tempo de ir." A canção, escrita anos
depois, já habitava o ar daquele outono de 1989. Não era uma partida fútil, mas
uma travessia sagrada, onde duas almas se encontraram na promessa inabalável:
"cuidaríamos um do outro em qualquer circunstância." Que pacto de
amor indestrutível, selado não sob juras vazias, mas sob o peso de malas e a
dor de um adeus temporário.
Belém,
então, tornou-se o novo palco para essa existência multifacetada. A dor da
separação, o "Ai, dor, de saber agora que me levo embora", expressa
no verso, era real. A alma se fazia de brisa, tentando suavizar a dureza do
"tenho que ir". Mas, no exílio voluntário, a força desse amor
transformou o que poderia ser um deserto em um jardim. Foi em terras paraenses
que a semente da "Pequena canção de terra" germinou no coração de
Fernando, um lamento doce pela distância do equador, do chão amado. E foi ali, na
peleja e na superação, que ele "deslanchou".
Sua
mente acadêmica, forjada em escolas públicas, encontrou na arte o mais puro
canal. Os livros, as palavras, as crônicas, os contos ganharam vida. A glória
do 1º Lugar no I Concurso de Contos das Universidades do Norte, em 1993, atesta
que a distância aguçou sua pena. O Compaq 386-DX, símbolo da modernidade e do
progresso, testemunhava a efervescência de novas ideias, de mundos sendo
construídos, de patrimônios edificados, não só em tijolo e cimento, mas em
sonhos. "A Água Benta e o Diabo", lançado em 1998, veio sacramentar a
vitalidade de sua escrita em pleno "exílio".
E
a música? Ah, a música! O Grupo Pilão, um porto seguro, acolheu e deu voz à sua
alma de compositor. O CD "Na maré dos tempos", em 1995, não foi
apenas uma comemoração de vinte anos de carreira, mas um farol que mostrava
que, mesmo longe, Fernando Canto era mestre em traduzir sentimentos em acordes.
A canção que hoje me inunda, "Pequena canção de terra", está ali,
gravada, um testamento perene daquele período. Os festivais, os prêmios de
Melhor Letra, Música Mais Popular, Melhor Arranjo – "Farras & Cimitarras",
"Assim como Raul" – ecoavam a resiliência e a capacidade de fazer
florescer em qualquer solo.
Dez
anos depois, com os filhos quase adultos, o círculo se fechou. Nosso retorno a
Macapá não foi apenas geográfico, mas um abraço apertado ao passado e ao
futuro, uma reafirmação da promessa feita sob o peso da dor. Dissemos um ao
outro: Nada, ninguém nos separará a não ser a morte de um de nós. E assim foi.
Uma declaração de amor, de cumplicidade que transcende o tempo, que resiste às
marés e aos ventos da vida.
Fernando
nos deixou em 2024, um ciclo completo de 70 anos, mas a canção que brotou
daquela travessia ainda pulsa. As lágrimas de agora, não são apenas de saudade,
mas de uma profunda compreensão. Elas são a prova viva de que a arte, quando
entrelaçada à vida com tanta honestidade e amor, torna-se eterna. A
"Pequena canção de terra" não é apenas uma melodia; é a crônica de um
amor que venceu a dor da partida, a distância do equador, e a tudo transformou
em uma ode à existência, ao pertencimento e à força indômita de duas almas que,
juntas, construíram um legado de beleza e resiliência.
E
assim, a melodia continua a soar, no vento, no encontro, na alma.
Hoje, 29/11/2024, atrevo-me a escrever sobre a transição de
meu amor, Fernando Canto, para o inimaginável.
Sim, inimaginável, pois ninguém tem certeza absoluta do que
ocorre na sequência do desvestir-se do corpo material, só posso discorrer sobre
o recorte de nossa trajetória, durante 37 anos, 10 meses, 10 dias e algumas
horas que estivemos juntos.
Desde o anúncio de sua partida, tenho me esmerado em cumprir
as partes burocráticas que o evento morte requer. Este episódio é impactante e
arrasador, assim. procurei desempenhar os rituais das exéquias com a certeza
inabalável de que meu coração estava à frente para fazer o que fosse
necessário, digno e compatível com a leveza, serenidade e simplicidade com que
o Fernando pautou toda a sua vida.
Ultrapassada esta fase, me recolho em mim para reencontrar
meus sentimentos.
Um misto de ternura, saudade, dor, perplexidade, carinho,
enlevo, tristeza e amor, muito amor perpassa em mim. Dias em que razão e emoção
se embricam para solidificar o viver.
Não desabo, só deságuo, às vezes, quando me dou conta de que
não tenho mais o OlhAR de Fernando. (grafia dele)
Ah, o olhar de Fernando dizia tanto... Vivo amortecida sem
seu olhar feliz, irônico, carinhoso, aborrecido, preocupado, debochado,
amoroso. Penso que Fernando diria: Não se preocupe o amor-tece-dor.
Assim estou neste momento, tecendo dores nas ondas do nosso
amor.
Aproveito para agradecer publicamente aos familiares e amigos
que trouxeram afagos, carinho, cuidado e respeito nestes dias tão dolorosos.
Sou só gratidão.
Encerro com este recorte do conto “Cornucópia de desejos”,
onde sinto um pouco o que Fernando via em mim:
“Descobri que sei de ti mais do sabes da pedra em teu
caminho. Sou teu (adi)vinho incontestável, ad-mirador de tua trajetória. Por
isso do alto da minha velada arrogância sei que tu também me amas. É por ti que
generalizo a farsa da criação sem pesadelos cosmogônicos. Eu me agonizo em
mistérios. Eu eternizo o meu olhar nessa paixão. E me enleio como as borboletas
que viajam ao paraíso pelo buraco sem-fundo do fim da terra. Por isso eu sei
que te amo.”
Hoje, 19/12/2024, Fernando e eu
comemoraríamos 38 anos de casados. Seriam nossas bodas de carvalho. Diz o
Google que as bodas de carvalho representam a sabedoria do casal que é usada
para enfrentar as adversidades e os impasses da vida, eivadas de companheirismo,
cumplicidade e parceria. Quis o destino que não completássemos os 38 anos de
vida em comum, mas permitiu 37 anos, 10 dias e algumas horas. Sou só gratidão. Nesta
trajetória fomos companheiros, cúmplices e parceiros, então, apesar da ausência
física, estamos sim cumprindo nossas bodas de carvalho, pois ele vive em meu
coração, no meu pensamento, na minha vida.
Em 1990, Fernando escreveu um
livro chamado “Inserções num vazio equidistante”, e o dedicou a mim. Nunca foi
publicado. A dedicatória: “À Sônia, este sumo. Seiva de golpe fundo.”
Ali está escrito:
TÉRMITA
Meu amor por ti
é teimoso
é roedor
é terno
Em cada 19 de dezembro, durante os
anos que estivemos juntos, celebramos sem festas familiares ou com amigos. Nossa
celebração tinha como testemunha o Rio
Amazonas, caudaloso, perene e nobre, onde nos dizíamos sobre nossa vida juntos,
o que pretendíamos no ano vindouro. Sem alarde, momentos nossos, sem presentes,
sem flor, apenas nosso amor se reinventando. Ali, nos prometíamos mundos e
fundos e voltávamos pra casa mais juntos, mais serenos, mais cúmplices.
Eu, em muitos momentos, disse a ele,
te amo além da vida. Ele me dizia, isto é profundo, mas só significa sempre. Eu
te amo, sempre.
No mesmo livro, sobre as
equidistâncias das inserções, diz:
Invernal e largo
como a noite
o teu vazio
ora germina
ora fenece
instrumental
cho ven do flor
Registros:
Eu: 19/12/2015:
Ah! O que dizer? Sempre juntos,
amor... rumo a qualquer lugar, em qualquer circunstância... Colhemos estrelas
no nosso caminho e as dispersamos em forma de bem-aventurança a todos quanto
partilham conosco a alegria de viver o nosso amor. Sempre juntos, sempre um.
Ele: 19/12/2022:
Há 36 anos eu e Sonia Mont'Alverne
Canto iniciamos nossa vida de casados, compartilhando o que surgiu durante esse
tempo. A cerimônia foi na igreja ⛪️ de São Benedito. Nossos
padrinhos foram Nazare Pacheco, Sérgio Aruana Elarrat, Beto Pacheco e Minha
irmã Savina Canto, os dois últimos de saudosa memória. O padre foi Paulo Lepre
e a Lúcia Uchôa Uchôa tocou magnificamente seu teclado. Obrigado, amor, por
todos esses anos de convivência. Te amo. Sempre.
Eu aqui, hoje, amando Fernando
Canto, além da vida e sempre.