Por Sônia Canto
Composição: Fernando Canto
Música incluída no CD ‘Na maré dos tempos’, gravado em
1995, em comemoração aos 20 anos de carreira musical do Grupo Pilão.
É hora das horas
É tempo de vento
É hora de encontro
É tempo de ir
Já não tem brinquedo
Já não tem palavra
E o sol brilha pouco
Longe do equador
Ai, dor
De saber agora
Que me levo embora
Me faço de brisa
Mas tenho que ir
Há melodias que nascem da saudade, e há saudades que se convertem em canções. No cerne de uma partitura tão delicada quanto "Pequena canção de terra", pulsa a própria vida, não apenas de um poeta, mas de uma família inteira. Uma canção que, ao ser revisitada, rompe diques e faz as lágrimas descerem, torrencialmente, revelando a crueza e a beleza de uma escolha talhada no amor.
Macapá, chão fértil de raízes, berço do homem amazônico, Fernando. Em suas veias, o Amapá corria como um rio caudaloso, alimentando a poesia que brotava em "Os Periquitos Comem Mangas na Avenida" e o encanto do "Roteiro Poético". Ali, onde a família se aninhou no Laguinho, ele teceu os primeiros fios de sua arte, um artista já prolífico antes mesmo de o vento da mudança soprar.
Mas o destino, por vezes, desenha curvas inesperadas, e a saúde de uma filha, a pequena Oriana, tornou-se a bússola implacável. "É hora das horas, é tempo de vento, é hora de encontro, é tempo de ir." A canção, escrita anos depois, já habitava o ar daquele outono de 1989. Não era uma partida fútil, mas uma travessia sagrada, onde duas almas se encontraram na promessa inabalável: "cuidaríamos um do outro em qualquer circunstância." Que pacto de amor indestrutível, selado não sob juras vazias, mas sob o peso de malas e a dor de um adeus temporário.
Belém, então, tornou-se o novo palco para essa existência multifacetada. A dor da separação, o "Ai, dor, de saber agora que me levo embora", expressa no verso, era real. A alma se fazia de brisa, tentando suavizar a dureza do "tenho que ir". Mas, no exílio voluntário, a força desse amor transformou o que poderia ser um deserto em um jardim. Foi em terras paraenses que a semente da "Pequena canção de terra" germinou no coração de Fernando, um lamento doce pela distância do equador, do chão amado. E foi ali, na peleja e na superação, que ele "deslanchou".
Sua mente acadêmica, forjada em escolas públicas, encontrou na arte o mais puro canal. Os livros, as palavras, as crônicas, os contos ganharam vida. A glória do 1º Lugar no I Concurso de Contos das Universidades do Norte, em 1993, atesta que a distância aguçou sua pena. O Compaq 386-DX, símbolo da modernidade e do progresso, testemunhava a efervescência de novas ideias, de mundos sendo construídos, de patrimônios edificados, não só em tijolo e cimento, mas em sonhos. "A Água Benta e o Diabo", lançado em 1998, veio sacramentar a vitalidade de sua escrita em pleno "exílio".
E a música? Ah, a música! O Grupo Pilão, um porto seguro, acolheu e deu voz à sua alma de compositor. O CD "Na maré dos tempos", em 1995, não foi apenas uma comemoração de vinte anos de carreira, mas um farol que mostrava que, mesmo longe, Fernando Canto era mestre em traduzir sentimentos em acordes. A canção que hoje me inunda, "Pequena canção de terra", está ali, gravada, um testamento perene daquele período. Os festivais, os prêmios de Melhor Letra, Música Mais Popular, Melhor Arranjo – "Farras & Cimitarras", "Assim como Raul" – ecoavam a resiliência e a capacidade de fazer florescer em qualquer solo.
Dez anos depois, com os filhos quase adultos, o círculo se fechou. Nosso retorno a Macapá não foi apenas geográfico, mas um abraço apertado ao passado e ao futuro, uma reafirmação da promessa feita sob o peso da dor. Dissemos um ao outro: Nada, ninguém nos separará a não ser a morte de um de nós. E assim foi. Uma declaração de amor, de cumplicidade que transcende o tempo, que resiste às marés e aos ventos da vida.
Fernando nos deixou em 2024, um ciclo completo de 70 anos, mas a canção que brotou daquela travessia ainda pulsa. As lágrimas de agora, não são apenas de saudade, mas de uma profunda compreensão. Elas são a prova viva de que a arte, quando entrelaçada à vida com tanta honestidade e amor, torna-se eterna. A "Pequena canção de terra" não é apenas uma melodia; é a crônica de um amor que venceu a dor da partida, a distância do equador, e a tudo transformou em uma ode à existência, ao pertencimento e à força indômita de duas almas que, juntas, construíram um legado de beleza e resiliência.
E assim, a melodia continua a soar, no vento, no encontro, na alma.
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